quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Um Nome que Nunca Esquecerei

Registrarei nestas páginas a minha morte e meu nascimento, pois acredito tomar uma decisão irreversível e sinto a necessidade do registro de minha existência.

Sabe quando você tem um sonho ruim, mas que não tem certeza de que está realmente dormindo e de repente acorda, ficando feliz por ter sido apenas um sonho?

Não foi o meu caso...

Deve ter notado que mencionei a morte antes do nascimento, mas esta é a real ordem dos acontecimentos. Sou católico e acredito que você também seja, então sugiro que não prossiga a leitura, mas caso desconsidere o aviso, compre uma generosa indulgência.

Assegurado da convicção de sua fé, continuarei minha história...

Sou de uma boa família da velha Itália, com um bom nome e alguns bens. Nasci Castel Morrone, na Província de Caserta em Nápoles. Eu fui um garoto comum, não muito diferente de como sou hoje, meus cabelos ondulados estavam à altura dos ombros e um pouco mais desarrumados, meu rosto continua o mesmo, arredondado como o da minha mãe, e os olhos castanhos claros também pertenciam à família dela.

Meu pai, sr. Giacomo Carrano, um homem sério, com uma leve falta de cabelos no centro da cabeça e os restantes todos grisalhos, usava um óculos redondo e pequeno, equilibrado em seu nariz torto e tinha um péssimo costume de discursar. No meu aniversário de 17 anos ele falou sobre a nossa família e o nosso legado. Ele queria que eu estudasse Direito e trabalhasse em seu escritório.

Ingressei na Universidade de Direito de Nápoles.

Eu era um “menino prodígio” e orgulho do meu pai, mal sabíamos da decepção que teríamos com esses planos.

Viram? Tive uma vida normal! Já fui humano um dia... tive uma casa... Ah! A minha casa! Era o meu ponto seguro.

Minha casa ficava no campo na orla de uma densa floresta em Castel Morrone, com arvores altíssimas que amanheciam com névoa em suas raízes e alimentavam as histórias que meu pai me contava. Tínhamos alguns cavalos, grandes e com porte para corrida, mas o sr. Carrano queria que eles fossem usados apenas para passeios. Eu gostava muito deles e da liberdade que tinham de correr pelo campo, em especial um cavalo selvagem de pelugem marrom claro e com as patas brancas. Pareciam aqueles sapatos de gafieira, e ele tinha o mesmo moral com os outros cavalos como o de quem usa os sapatos brancos nos salões de dança. Era um puro-sangue que fora capturado recentemente, indomável, não gostava de viver preso como os outros. Eu o chamava de Ventania. Queria isso para mim, essa força para ser livre e de não deixar que digam o que tenho que fazer.

Meus dias na Universidade eram entediantes, os professores eram todos iguais, os alunos não costumavam conversar e o timbre de voz do professor da cadeira de Direito Penal era um convite a dormir, eu sentia que minha vida não era a carreira acadêmica.

Decidi voltar para casa.

Eu lembro de cada detalhe como se fosse hoje. Eu saí numa tarde de quarta-feira, o céu estava cinza, mas não chovia, eu me despedi do único amigo que fiz na Universidade.

Fabrizio era um rapaz bem educado, de uma família nobre da velha Itália, vestia boas roupas e usava um bigode bem fininho fazendo o contorno dos seus lábios superiores. Parecia uma moldura. Tinha olhos de quem quer algo, mas nunca desconfiei, pois ele sempre fora um bom amigo e era para ele que eu contava meus segredos, meus receios, meus sonhos. Falei para ele sobre a filha dos Ambrósio, a Claudia, uma linda moça de pele bronzeada e cabelos ondulados, um tanto dissimulada, mas com olhar que o convida a entrar. Fabrizio ouvira tanto dos meus contos sobre a moça que talvez a reconhecesse caso esbarrasse na rua sem nem ao menos conhecê-la.

Não poderia esquecer aquele momento, não pelo desapontamento dos meus pais, mas pelo que vinha em seguida. A despedida fora demorada e Fabrizio prometeu-me uma visita em casa, então pude viajar sossegado.

Ele tinha “olhos de quem quer algo”, como nunca vi isso? Que atire a primeira pedra aquele que nunca se enganou! Eu tinha apenas 17 anos e estava preso àquela Universidade, longe de tudo que mais gostava, me sentia como o Ventania. Ah, que saudades eu tenho daquele Puro-Sangue! Voltar para casa parecia ser uma idéia tão boa. Eu vesti o terno que um alfaiate amigo do papai tinha feito para mim. Estava decidido. Talvez eu não estivesse aqui escrevendo para você se tivesse optado por continuar em minha prisão...

Parti para casa.

A viagem não foi muito tranqüila, a ansiedade fez com que cada minuto se transformasse em séculos, eu temia o que meu pai ia dizer sobre a minha saída da Universidade, podia vê-lo em minha mente, o sr. Carrano com a sua cara de porteiro de cemitério, igual como ele fez quando soltei os cavalos do estábulo uma vez. Guardei para mim a imagem de Claudia, e juntamente com as lembranças de Ventania fizeram o meu conforto durante a viagem. A carruagem não era muito veloz e nem muito luxuosa, mas bem composta, a madeira mogno recebera ornamentos e desenhos dourados, o banco tinha uma cobertura de almofada com tecido vermelho, digna do renome de minha família. Uma viagem da capital para casa demorava cerca de cinco horas. O escritório do papai ficava na cidade em Caserta e algumas vezes ele dormia por lá. A mamãe sempre ficava apreensiva quando ele dormia fora. Eu esperava encontrá-los em casa, então havia enviado uma carta anunciando a minha chegada.

Eu me parecia muito com minha mãe, a dona Maria Guiseppa di Salete, seus cabelos cacheados, os olhos castanhos, e o seu rosto arredondado. Ela adorava fazer tortas de maçã e eu mais do que ela. Devorávamos tudo. Faziam seis meses que não via os meus pais e eu estava ansioso, coloquei quase o corpo todo para fora da carruagem quando vi a minha casa no horizonte. As luzes da casa estavam acesas, eu podia ver a dona Salete andando de um lado para o outro, também ansiosa com a minha chegada. Ela mal percebeu a carruagem e correu para a porta, me recebendo com longo abraço. Minha mãe aparentava estar muito bem, apesar de tudo, e estava usando um vestido vitoriano cor branca e bem volumosa que havia ganhado do meu pai a alguns anos atrás, eu lembro dos bordados das rosas que dona Salete amava, as magas bem justas nos ombros e mais folgadas nos pulsos, era o vestido dela que eu mais gostava, seus cabelos cacheados estavam desarrumados por conta do vento, e o xale quase caído ao chão devido ao sobressalto e a corrida a porta da casa. Ela estava linda e tudo estava bem. Após o longo abraço, entramos em casa.

Era a calmaria antes da tempestade que mudaria minha vida por completo, que me amaldiçoaria. A recepção tinha um tom de despedida, ainda sinto as lágrimas soltas em meu rosto. Os animais sentem quando está perto do fim, e nós não somos diferentes.

A minha casa era grande, logo depois da porta de entrada vinha um corredor e nele havia cabides para pendurar chapéus e paletós, quadros de um pintor francês realista retratando a vida cotidiana enfeitavam as paredes, o assoalho era de madeira e rangia ao passar. Quando pequeno eu ouvia este som e imaginava fantasmas na casa. Seguindo o corredor tínhamos a frente uma escada que subia para os quartos, junto dela havia um grande relógio de madeira preso a parede, e mais a frente uma passagem para a cozinha, à esquerda estava a sala de estar onde recebíamos as visitas, as paredes tinham cor amarelo pardo, retratos dos familiares nos espiavam das paredes junto as enormes janelas onde uma fina cortina tremulava com a brisa da noite. O sr. Carrano estava sentado em uma das poltronas, lendo um jornal que falava sobre os novos barcos à vapor. Ele parou de ler baixando o jornal enquanto olhava para mim. Estava apenas sério, não mais que o de costume.

Convidou-me a entrar na salinha de escritório.

Diplomas e premiações emolduradas cobriam boa parte de uma das paredes, e no centro da saleta havia uma grande mesa cheia de gavetas coberta de papeis de contratos, petições, cartas e alguns livros abertos. Esta saleta era uma espécie de templo para o sr. Carrano, sempre conversamos assuntos sérios ali e a minha desistência da Universidade merecia ter uma conversa sediada neste local. Nunca tive tanto medo na minha vida quanto ali naquele momento. Estava pronto para ouvir o sr. Carrano discursar, mas não era bem isso o que ele tinha em mente. Um nome que eu nunca esquecerei: Genaro Carrano. Ouvi este nome em mais alguns gritos do meu pai antes de partir correndo para o estábulo, e lá fiquei até adormecer.

O retrato da família era uma prova da tortura que mau pai fazia em busca da perfeição, eu fiquei três horas parado para que o quadro fosse pintado.

Achou o sr. Carrano assustador? Espere para saber o que vinha em seguida.

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