domingo, 24 de janeiro de 2010

Os Anarquistas

Eu pensava que o De Pádua esquecera da visita marcada. Esperamos um mês inteiro por sua chegada e então desistimos. Outros cinco meses se passaram e já estávamos no verão.

A Casa Vermelha estava desarrumada, diferente da glória de outrora, restaram uns poucos móveis empoeirados, parados no tempo, esquecidos na sala escura, mas Riccardo estava muito à vontade e tomou a liberdade de acender algumas velas que trouxe consigo talvez esperando encontrar um ambiente que necessitasse delas. Fomos recebidos com um enorme sorriso debochado seguido de um exagerado gesto de reverência, tendo o nariz quase tocado o chão. Ele fitou-me com um olhar profundo como fez da outra vez, temi que pudesse ler meus pensamentos, mas se o fizesse apenas saberia da minha estranheza sobre sua aparência doentia e agressiva. Mais alguns constrangedores segundos de olhares avaliadores e Riccardo toma a iniciativa de se aproximar com dois passos e quebrar o silêncio com um cordial “boa noite”.

- Não vai me convidar a sentar, Sartori? Onde estão os seus modos?

O De Pádua sabia se vestir de forma a se destacar em qualquer lugar, mas desta vez ele estava elegantemente bem vestido, o cabelo preso evidenciava a sua calvície e pusera pó de arroz no rosto exaltando suas enegrecidas olheiras. Usava luvas brancas e com o braço flexionado atrás das costas fazia-o parecer um cavalheiro. Sabia fingir muito bem.

Sartori entendeu a pergunta como uma provocação e a respondeu com rispidez:

- Você já está tão à vontade, Riccardo. Faça como quiser.

O anarquista se apoderou de uma das empoeiradas cadeiras e sentou-se lentamente saboreando cada sensação do ato. Eu bati a poeira de uma delas e também me sentei, esperava que Sartori me acompanhasse, mas ele abriu uma das janelas e escorou-se lá mesmo.

- Essas cadeiras são muito boas, meu amigo, você devia conservá-las melhor...

O bacharel interrompeu o que seria mais uma das provocações do visitante:

- Vamos direto ao ponto, Riccardo.

Eu e o De Pádua ficamos surpresos com a falta de cortesia com um velho amigo. O anarquista, sempre exagerado, ficara de boca aberta por uns instantes até voltar a falar.

- Eu vim conhecer melhor o meu afilhado. Você me convidou para esta visita, lembra?

- Eu sei o porquê de estar aqui. Vai tentar novamente me persuadir a não filiar a Camarilla? – o bacharel franziu a testa em tom ameaçador enquanto falava.

- Sim, de fato, eu não ia falar sobre isso agora, mas já que falou... – o cinismo do anarquista era tão exagerado quanto todas as suas expressões e reações.

Sartori fingiu não entender a ironia e quis encerrar o assunto:

- Não! Esqueça isso. Não voltarei atrás.

- Oh! É aquela coisa de perdão, não é? Seguir um caminho de paz interior... Que besteira!

O anarquista sabia mesmo o que estava fazendo, o bacharel começava a dar sinais de irritação.

- Você não tem idéia do que está falando, Riccardo. Nós já conversamos sobre isso.

- Não sei? Contou para o seu aprendiz sobre os nossos momentos? A sua fúria... É... FÚRIA! Há há há hioe woa há! Contra quem? Uh? Os Anciões? A Camarilla? É... Talvez eu saiba alguma coisa. Sim, eu tenho idéia do que estou falando.

O bacharel reagiu como se tivesse tomado um golpe baixo e preparou a sua defesa:

- Os anarquistas se transformaram em demônios, estão sob a bandeira Sabá agora. Os poucos que sobraram se escondem ou, como eu, resolveram juntar-se a Camarilla.

- A Camarilla te traiu uma vez e vai fazer novamente! – o anarquista fora rápido em rebater.

O visitante estava firme e intimidante desta vez e Sartori retrucou:

- Eu tenho minhas dúvidas se foi realmente a Camarilla quem me traiu, Riccardo.

- Está com saudades dos elogios, das bajulações, Doppiamente Temuto? – a língua do anarquista era mais afiada que os floretes da guarnição de Nápoles.

Sartori avançou para o De Pádua até uma distância ainda cortês, apontou o dedo para o nariz do anarquista e despejou as provocações que engoliu até o momento:

- Você quer somente provar que suas teorias estão certas. Você não sabe N-A-D-A. Você é apenas um LOUCO!

Sartori atingiu o De Pádua a tal forma que este ficou segundos parado. Engoliu o cinismo e a ironia, vomitando tudo em seguida, ligeiramente perturbado, com tremores em suas mãos sempre gesticulando:

- Não sei nada. É? – Riccardo De Pádua balançava a cabeça – Sei sim, sei de muita coisa. Ah! Eu sei. HÁ HÁ HÁ! – o anarquista olhou repentinamente para mim arregalando os olhos – Eu sei de T-U-D-O!

Ele sabe de tudo o que? Estaria falando do malfeitor? Foi no que pensei e minha reação não poderia ser outra. Antes que eu pudesse mandá-lo contar, o bacharel berrou contra o anarquista:

- PARE!

- Não, Sartori! Deixe-o falar. Agora eu quero saber! Você sabe o que? Você sabe sobre o que fizeram comigo, não sabe? FALE! – Eu sentia minhas feições mudando com o meu temperamento, a Besta estava próxima.

Eu segurei o louco pela gola de sua camisa de corte e costura perfeita enquanto esbravejava. O louco apenas assistia seu corpo sendo sacudido na posição de submissão a qual eu o impus sentado na empoeirada cadeira. Ele me olhava em pleno gozo da situação como se estivesse sentindo um orgasmo.

- Ele é tão parecido com você dos velhos tempos, Sartori. Lembra? – a voz do anarquista saiu fina e quase como um assobio.

Sartori também estava com as presas expostas e exibia as poderosas garras em uma das mãos, apesar de parecer estar sob controle faltava-lhe pouco para um frenesi:

- Se falar mais uma vez... – o bacharel ameaçou o visitante.

Eu segurei o anarquista pelo pescoço e também exibia as minhas garras.

- Se você não falar eu arrancarei sua garganta! – Eu estava convicto de que cumpriria com a ameaça caso o louco não começasse a falar e sentia a Besta pulsando em meu peito.

- Genaro, não! É isso que ele quer! – Sartori estendia a mão em sinal para que eu não prosseguisse.

Riccardo De Pádua olhou para mim com extrema felicidade e satisfação sob minhas mãos e sorriu ao falar:

- Então seu nome é Genaro. – sua voz estava confortavelmente suave.

Sartori demonstrava preocupação com o assédio de seu velho amigo com o seu aprendiz repreendendo-o:

- Ele não! Seu assunto é comigo.

O anarquista parecia estar se divertindo um bocado a nossas custas:

- Você não contou pra ele, Sartori?

- Não me contou o que? – Eu estava mais curioso do que furioso e sentia a Besta indo embora aos poucos.

- Nada! Ele é um louco, um Malkaviano! Não escute o que ele diz. – o bacharel tentava se aproximar enquanto falava.

- Ah! Que feio, Sartori! Escondendo-se atrás de minha loucura. Vamos, você já foi mais leal!

Eu e o bacharel nos entreolhamos e o medo estava estampado em sua face. Eu ainda segurava o anarquista com bastante força.

- Oh! Agora eu sei porquê você não contou, ele é muito bom. Ah, sim! Ele é muito bom! Você vê nele alguma forma de redenção do que fez? – Riccardo ria enquanto falava e apontava para o bacharel.

Sartori estava bastante perturbado e queria acabar com aquela conversa o mais rápido possível:

- Não é da sua conta! Vá embora! Genaro, solte-o!

- Não sem antes saber quem foi que matou minha família e fez isso comigo. Você sabe quem foi não é, Sartori? Sempre soube e nunca me contou. Mentiu para mim!

- Ah! Ho ho oh ho. Ele sabe sim. Mentiu! Conte Sartori. Esse monstro que fez isso com o pobre Genaro... é um Camarilla?

Sartori hesitou um pouco antes de confirmar:

- Sim. – o bacharel respondeu com um suspiro.

- Os seus inimigos estão lá, Genaro, na C-A-M-A-R-I-L-L-A. – o louco não mais ria.

A raiva que sentia era tanta que não consegui falar mais nada. Larguei o louco no chão e fui embora da Casa Vermelha. Sartori tentou me impedir, mas eu o ignorei e ele também não insistiu.

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